A coisa goteja de forma dolorosa no noticiário conservador, que resiste em expelir o que sabe como quem guarda uma pedra no rim.
Machuca mais segurar ou
botar para fora?
Difícil.
A Siemens, uma das
grandes fornecedoras de equipamentos do metrô de São Paulo, já
decidiu.
E contou tudo, ou quase
tudo, sobre a pré-definição ilegal de cotas e preços entre
‘concorrentes’ nas grandes licitações tucanas.
A acomodação desse
condomínio de interesses lesou o cofre público com um sobrepreço
ora aventado em torno de 30%.
Durante década e meia.
Período no qual a rede
metroviária da capital avançou a passo de preguiça para somar 74
km de trilhos: 1/3 da mexicana, que começou junto.
É possível que o
curso das investigações elucide os nexos entre uma coisa e outra: a
lerdeza operacional tucana e o conluio de seus governantes com o
oligopólio.
Por ora, a pergunta que
aflige a atividade renal do colunismo da indignação seletiva é de
natureza mais ampla:
'Uma lambança dessa
ordem, assentada no aconchego de três governos sucessivos do PSDB –
Covas, Serra e Alckmin – teria prosperado, por tanto tempo, sem a
parceria orgânica de altos escalões?'
A ver o empenho
investigativo da artilharia que sempre atuou a plenos pulmões em
ocasiões em que o seu alvo eram reputações progressistas.
Duas ou três coisas
precisam ser ditas enquanto isso.
Elas remetem ao núcleo
duro desse enredo: a união estável entre cartel e política nos
dias que correm.
O oligopólio flagrado
sob as asas do PSDB em São Paulo é a forma hegemônica de
planejamento no mundo atual.
Uma modalidade de
‘intervencionismo' às avessas.
Uma forma de
planejamento privado; do capital contra a sociedade.
É disso que se trata.
Cada vez mais, grandes
corporações substituem a concorrência pelo rateio clandestino de
mercados, bem como de cotas em uma licitação, formando neste caso
um cartel de preços.
O ilícito assegura
lucros robustos de oligopólio a cada um dos participantes.
Imperasse a livre
concorrência, os preços desabariam.
O lucro seria da
sociedade.
No caso de São Paulo,
os cofres públicos pagaram o sobrepreço do butim.
Invariavelmente, esse
arredondamento financeiro inclui a comissão daqueles que deveriam
zelar pelos interesses da sociedade, mas aderem ao desfrutável
complô contra ela.
Paradoxalmente, esse
talvez seja o ingrediente mais barato do enredo em questão.
Mais grave é o assalto
que os seus protagonistas praticaram, simultaneamente, ao longo de
anos, contra o discernimento crítico da sociedade.
Estamos falando da
catequese da livre concorrência contra tudo o que exalasse o mais
tênue aroma de regulação da economia pelo interesse público.
No jogral que nunca
desafina, lá estavam os titãs das privatizações; a turma do
choque de gestão; os liquidacionistas da era Vargas; os pregoeiros
do câmbio livre; os trovadores do Estado mínimo; o pelotão
antigasto público; os áulicos das finanças desreguladas; os
vigilantes do ‘superávit cheio’; os algozes do BNDES; os
prosadores da desindustrialização virtuosa (laissez passer); os
mariners do ‘custo Brasil’; os doutores da purga da produtividade
(‘tarifa zero’); os droners das ‘incertezas dos mercados...
Tudo modulado pelo
diapasão da vantagem inexcedível dos mercados autorregulados na
alocação de recursos para gerar riqueza ao menor custo, com maior
eficiência.
Eis que, todos juntos,
são apanhados na peculiar lubrificação de um comboio antagônico à
livre concorrência em São Paulo.
Demolidor, mas não tão
original assim.
E esse é o ponto a
reter da grande fraude por trás das outras menores, como essa do
assalto ao metrô.
Na realidade, as ditas
‘economias de mercado’, acalentadas no discurso tucano,
debatem-se hoje estruturalmente com o assalto da escala capitalista,
que capturou todas as instancias da sociedade e, por decorrência, a
própria soberania de governos e nações.
‘Globalização’ é
o nome fantasia desse agigantamento do capital que desafia partidos,
urnas e povos, subtraindo-lhes o direito de comandar o próprio
desenvolvimento.
Não é um discurso.
Há um indicador que
mede esse emparedamento: a ‘razão de concentração de mercados’.
Ela indica o quanto um
setor da economia é dominado pelos seus quatro maiores atores
corporativos.
Nos EUA, por exemplo, o
mercado de lâmpadas é 88,9% dominado pelo quarteto do setor.
E daí?
Um caso clássico na
literatura econômica remete à decisão do cartel dos fabricantes de
lâmpadas, em 1924, de limitar em 1000 horas a vida útil de seus
produtos.
Já então, a
tecnologia permitia esticar esse prazo a 2.500 horas.
A ganância não se
restringe mais a fabricantes de lâmpadas.
Ela se tornou
infecciosa, açambarcando boa parte da economia, desde a produção
de cerveja, sucrilhos, aviões ou vagões de metrôs.
E não só na esfera
produtiva.
A exemplo do que
acontece no resto do mundo, o cartel mais poderoso no Brasil, hoje,
tem nome e endereço conhecidos.
Chama-se Febraban,
reúne os grandes banqueiros do país, administra os spreads cobrados
da população e arregaça os caninos quando o Estado interfere no
seu negócio.
O ganho econômico
auferido dessa forma é facilmente identificável em exemplos como os
da obsolescência das lâmpadas, o custo do crédito ou o ‘plus’
no caso do metrô.
Mas existe algo ao
mesmo tempo mais significativo e menos transparente a ligar todas
essas manifestações.
Trata-se da pertinência
emergencial do planejamento econômico na sociedade contemporânea.
A escala atingida pelas
grandes concentrações oligopolistas não pode mais ser ativada
racionalmente sem planejamento.
O risco é a
autodestruição produtiva, de um lado; ou a espoliação da
sociedade, de outro.
Quem fará esse
planejamento é uma das grandes questões da luta democrática em
nosso tempo.
Ela permeou a disputa
presidencial em 2002, 2006 e 2010.
Permeará igualmente a
de 2014.
A reação irritada dos
tucanos contra o CADE, que investiga o abuso do poder econômico
contra a sociedade, nas licitações de São Paulo, resume o lado do
PSDB nessa disjuntiva histórica.
Ao tucanato conceda-se
o mérito da coerência.
O Estado mínimo que
tem no PSDB um centurião canino é o regaço histórico dessa
modalidade de planejamento do capital contra a sociedade.
Ou da sociedade a
serviço do capital.
O caso do metrô,
devidamente investigado, poderá se revelar uma pedagógica
ilustração dessa mecânica, que desautoriza o cuore neoliberal nos
seus próprios termos.
A ver.
Postado por Saul Leblon
às 05:08