quarta-feira, 16 de maio de 2018

Carta a Lula



Exmº Sr. Ex-Presidente da República do Brasil Lula da Silva,

Há homens que lutam um dia, e são bons; há outros que lutam muitos dias, e são muito bons; há homens que lutam muitos anos, e são melhores; mas há os que lutam toda a vida, esses são os imprescindíveis!
Bertold Brecht

Maria João Cantinho


Peço desculpa por não escrever à mão e preferia fazê-lo, seria mais pessoal, mas receio que possa não conseguir ler bem a minha caligrafia. Por isso esta escolha. Além disso, sou portuguesa e o meu português é ligeiramente diferente.

Não gosto de ouvi-lo dizer, a não ser por ironia, que não tem curso superior. O senhor não precisa de nenhum curso superior nem tem de sentir-se inferior a ninguém. Muito pelo contrário, é muito superior a todos esses enfatuadinhos cheios de títulos, que andam a destruir o seu país. Aqueles que acham que, por serem titulados, isso lhes dá o direito de maltratar quem lhes apetece e até denegri-lo por isso. Lula, o senhor é um homem raríssimo, tem uma alma limpa e um carácter amoroso, será sempre superior a esses sujeitos que se alimentam do ódio de classes e agora querem destrui-lo.

O senhor era pobre e dos pobres veio. Os pobres não estudavam e foi o senhor quem deu a possibilidade aos pobres de fazerem o que não conseguiu fazer em menino e jovem. A vida agarrou-o pelos cabelos e a luta não lhe deu tempo para estudar, esse privilégio pelo qual lutou, para dá-lo aos outros. Só quem não quer ver não entende. E o homem sem curso foi o que mais cursos ofereceu a toda a gente, favorecendo as políticas de educação, dando bolsa-família, lutando por tirar o Brasil do mapa da fome. Coisa que nunca lhe perdoarão esses classistas e sabe isso tão bem quanto eu.

O Brasil tem neste momento, mais do que um gravíssimo problema político, um problema grave de valores, estando totalmente invertidos, como aliás em todo o mundo. Valores éticos, políticos, culturais e sociais. Não há política sem ética e é o que está a acontecer no Brasil, neste momento. A selvajaria dos políticos que deixaram de subordinar os seus valores à ética está à vista. Olhar para essa caricatura do ódio, como Bolsonaro, é repugnante, mostrando como a imoralidade se tornou impune, alavancada pelo discurso do ódio. E o senhor atravessou-se no caminho deles, dos imundos, dos porcos que, em breve, se irão denunciar e destruir uns aos outros, quando sentirem que o senhor deixou de ser o seu principal inimigo. Eu estou morta para ver esse afundamento sucessivo de figuras sinistras e vampiras. E vou aplaudir na primeira fila, juro-lhe.

O senhor ganhou toda a minha admiração há muito tempo. Há mais de 15 anos que vou ao Brasil e observei com alegria como o Brasil evoluiu com o seu governo e, depois, com Dilma. Em 2013 estive no Brasil durante 2 meses, a trabalhar como professora-visitante, e pressenti que as coisas estavam a mudar. Desde aí, o meu coração não pára de sangrar. Sinto, pelos amigos queridos que vivem no Brasil e pelo meu sentimento de justiça, sempre muito apurado. Não há como não sentir, sendo filha de um pai que foi perseguido pela PIDE, antes da Revolução de Abril. O meu pai não me deixou riquezas, mas sim uma herança sem preço e luto por transmiti-la aos meus filhos e, quem saberá(?), aos meus netos. Essa capacidade (que ele tinha) de ver claro onde tudo parecia escuro, de estar sempre do lado de quem precisa e não ao lado do poder, a qualquer preço. Estar onde é preciso estar. Às vezes calha estar ao lado do poder, mas apenas se sentir que o lado do poder é o da verdade. Bem sei que a verdade é hoje um conceito maltratado. Já não se fala de verdade, mas de pós-verdade ou de meta-narrativa, toda uma panóplia de conceitos que permitem fazer retórica ao bel prazer de qualquer um. Mas a verdade, querido Lula (permita-me chamar-lhe assim), é a verdade, aquilo que um tal Aristóteles dizia ser uma relação de adequação à realidade. É do que falo. E a verdade vai com justiça, como dizia meu amado Walter Benjamin, esse que é hoje tão celebrado pela Teologia da Libertação. A história que vivemos não é verdadeira, dizia ele, quando só fala, ou só quer falar, dos vencedores, do progresso. Isso é mentira. Por isso ele falava de uma outra história, uma história que desse lugar aos vencidos, às crianças, às mulheres, aos sacrificados. Essa é a exigência da justiça. E a justiça é verdadeira, significa repor a verdade na história. É tão simples que qualquer criança entende. Não é verdade contar a história dos brancos matando negros, não é verdade defender a democracia prendendo justos e inocentes. E o senhor, que é crente (embora eu seja ateia, mas penso de forma cristã), sabe isso tão bem quanto eu. Pode esconder-se a mentira debaixo do tapete, mas durante quanto tempo?

Aquilo a que assisti, durante 4 dias em directo, em São Bernardo da Feira, pois os seus leais amigos passaram no Facebook em directo, além dos jornalistas livres e da Mídia Ninja, foi ao nascimento de um mito: o senhor. O seu discurso e a resistência do povo, ao seu lado, comoveram-me até às lágrimas. Que homem é esse, capaz de levantar assim um povo, com palavras tão verdadeiras, tão sábias e tão simples? E, por outro lado, isso também me mostrou o «perigo» que o senhor representa para estes golpistas medíocres que o agridem e torturam agora. Porém, vi em si um leão que nunca se rende, nem se renderá, porque a sua vontade vem de algum lado que ninguém sabe explicar, a sua força é imanente, contagiante, e maior que o senhor. Como o senhor disse, Lula «já não é um homem, mas uma ideia» e é disso que o Brasil precisa desesperadamente, uma ideia ou uma ideologia que venha e arrebate o povo. O senhor é um mito vivo, como eu escrevi e envio aqui o meu artigo, para que possa ler.

Não querendo roubar-lhe tempo, o qual deve ser precioso para a constituição da unidade de esquerda e negociação com os seus lideres, deixo-o com um abraço muito carinhoso e cheio de esperança.

Maria João Cantinho
Autora, ensaísta e poeta. Tem quatro livros de ficção publicados, 4 livros de poesia e 1 ensaio. Doutorada em Filosofia.

Enviei a carta juntamente com um artigo que escrevi na Revista Caliban.


Fonte: REVISTA CALIBAN



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